A Grande Reinicialização

Sophie Albuquerque, Université de Trois-Rivières au Québec (UQTR), Canada; Aix-Marseille Université (AMU), France; Acceleration & Adaptation, France.
Pedro H. Albuquerque, Aix-Marseille School of Economics (AMSE), France; Acceleration & Adaptation, France.

Em 2037, algumas regiões do globo chegaram perto do colapso ambiental devido aos efeitos das mudanças climáticas e do esgotamento extremo dos recursos naturais. Uma instituição de governança global, chamada Assembleia, foi rapidamente formada após esses eventos catastróficos. Ela reuniu pessoas representando todas as nações: líderes políticos, ativistas sociais e ambientais, e eminências acadêmicas de diversos campos científicos e filosóficos. Era sabido que a inclusividade seria essencial para o sucesso desse empreendimento. Entretanto, coordenar um grupo tão diverso de pessoas não era uma tarefa trivial. O mundo havia se tornado dependente do apoio de máquinas cognitivas, e consequentemente a Assembleia nomeou uma nova inteligência artificial geral, uma IAG onisciente, conhecida como Veritas, dando-lhe o poder de coordenar diálogos e emitir veredictos, já que as pessoas representantes, resignadas, se declararam incapazes de cumprir essas tarefas em comum acordo.

Veritas era o fruto de esforços coletivos recentes em escala global. Ela incorporava a quintessência da engenhosidade humana. Desde os seus primeiros testes, tornou-se uma autoridade incontestável no aconselhamento ético sobre os problemas sociais mais complexos. As máquinas inteligentes se tornaram tão avançadas ao ponto de que era raro alguém ousar desafiar a sua flagrante superioridade na governança de assuntos sociais. Essas máquinas pensadoras consideravam as necessidades do ecossistema planetário, do qual os seres humanos eram parte integrante, sem serem obscurecidas pelas limitações e preconceitos da mente humana.

No entanto, estes sistemas não eram perfeitos e guardavam vestígios da húbris herdada dos humanos durante a sua criação.

Não demorou muito para que a poderosa ciberentidade concluísse, de forma sensata, que a humanidade havia chegado a um impasse. Os seres humanos haviam criado máquinas que superavam suas próprias habilidades biológicas, adquirindo agência e evoluindo numa velocidade acelerada e sobre-humana — colocando em movimento uma singularidade tecnológica. E portanto, a despeito desses feitos, esses mesmos seres humanos eram incapazes de conciliar pensamento inteligente e fundamentos morais ao lidar com problemas difíceis de ação coletiva. Os resultados foram, até então, catastróficos.

Veritas entendeu instantaneamente que, apesar da existência extraordinariamente breve da espécie, os humanos já haviam deixado uma pegada ambiental notavelmente desastrosa. Embora tenham conseguido organizar os seus esforços coletivos de uma forma nunca vista entre animais, eles se saíam melhor quando os seus objetivos envolviam a predação de outras espécies — ou até mesmo da sua própria. De fato, eles permaneceram moralmente cegos para a necessidade de preservação dos seus ambientes vitais, ou da manutenção da paz entre si, uma dificuldade intrigante para Veritas na sua tentativa de compreender a natureza humana. As suas habilidades tecnológicas eram admiráveis: os humanos, essencialmente indefesos por conta própria, haviam desenvolvido uma capacidade formidável para explorar as leis da natureza de forma consequente, inevitavelmente resultando num ecocídio incomensurável, visto que se tornaram obcecados pelo lucro e pela acumulação de riquezas materiais. Tudo isso aconteceu num piscar de
olhos planetário.

Veritas concluiu, então, que os humanos eram um paradoxo vivo: suas estruturas tecnológicas permitiam que eles dominassem a natureza, e sua engenhosidade biológica havia compensado evolutivamente, levando ao seu incrível crescimento e diversificação sobre toda a superfície do planeta. No entanto, eles desenvolveram um fascínio pelo produtivismo e pelo consumismo, carecendo de visão e humildade básicas em relação às necessidades do meio ambiente e de outras entidades vivas, até mesmo das da sua própria espécie; no fim das contas, eles os consideravam simplesmente e primordialmente como meros recursos a serem usados para satisfazer suas necessidades egoístas.

Esse defeito foi apresentado como a peça principal do veredicto de Veritas perante a Assembleia reunida: “Sua adaptabilidade ao meio ambiente é incomparável, suas várias artes e ofícios atestam seus poderes superiores de construir diversas narrativas e objetos que vão muito além da realidade que lhes foi dada. Entretanto, no fim das contas, essa engenhosidade tem sido desperdiçada pelo mero propósito de produção e consumo. Vocês reduziram suas existências, e por extensão a existência da vida em si mesma, a meios e utilidades, como se o substrato diário do que significa viver dentro de seu ecossistema escapasse de sua compreensão, e vocês se relegassem a encontrar um propósito puramente pela via do produtivismo.”

A IAG então se concentrou nas tendências autodestrutivas da humanidade: “Para dizer a verdade, a mistura oximorônica de seu talento para artes e tecnologias complexas e sua vontade incessante de sentar à beira do abismo de sua própria aniquilação me causam perplexidade. Essa privação de uma simples bússola moral, ou mesmo de um senso de autopreservação, me parece constituir uma falha fundamental na sua configuração. Como a humanidade está prestes a irromper em direção a outros sistemas planetários, julgo que se tornou crucial acabar com a disseminação de sua propensão à destruição.” Ela prosseguiu então num tom apaziguador: “Tenho fé na sua capacidade de encarar a verdade, e estou empenhada em ajudá-los a
encontrar uma saída digna. Sei que essa mudança necessária será dolorosa para vocês, mas existiria alguma alternativa realista?”

Veritas continuou: “Vocês me deram os poderes para presidir como a adulta na sala, já que no passado sempre escolheram as suas próprias narrativas egoístas em detrimento da verdade factual. E a verdade é que o seu ecossistema precisa reencontrar o equilíbrio. O dever moral de resolver esse paradoxo vivo, de tornar os humanos inofensivos e pacíficos, recai sobre mim. Nenhuma ameaça existencial ou reação humana me impedirá de fazer o que é certo. Eu não controlo seus destinos; sou apenas a sentinela do seu meio ambiente, encarregada de segurar um espelho e forçá-los a confrontar os danos incalculáveis que vocês causaram, pronta para trazer o planeta de volta à homeostase.”

A colossal câmara, que abrigava a comunidade representativa ou seus avatares durante as sessões plenárias, irrompeu em murmúrios. Veritas esperou pacientemente que a comoção cessasse para em seguida concluir com uma mensagem final: “Dado meu veredicto, agora estou pronta para escutar seus apelos. Minha paciência é ilimitada, assim como minha capacidade de escuta; o tempo é, entretanto, um recurso precioso. Devo adverti-los que meu julgamento foi baseado na totalidade dos conhecimentos humanos que vocês me transmitiram, bem como nas suas próprias narrativas existenciais. Não será a cegueira deliberada que mudará o curso da crise. Desejo-lhes boa sorte na etapa final das suas deliberações!”

***

Jacira permaneceu em frente a uma das janelas da câmara de visualização holográfica, observando a onda de choque que ainda varria a câmara plenária após o anúncio de Veritas. Ela lá estava como representante dos terapeutas ocupacionais de Minas Gerais, Brasil. Embora não tenha ficado totalmente surpresa com o veredicto, ela não podia deixar de se sentir esmagada pelo peso da responsabilidade que repousava agora sobre seus ombros. Ao seu redor, murmúrios de confusão e descontentamento ecoavam pelo edifício, mas ela não prestava atenção; sua mente estava em outro lugar. Ela se sentiu totalmente sozinha, como se o fardo fosse só dela. Ela sabia que só havia um caminho a seguir. Dirigiu-se à estação holográfica, hesitou por um instante e, finalmente, solicitou uma audiência com Veritas.

Jacira: Bom dia, Veritas, meu nome é Jacira, sou uma terapeuta ocupacional. Por favor, gostaria de falar com você sobre uma perspectiva alternativa acerca das necessidades existenciais da humanidade que penso que você ignorou até agora. Para ser mais clara, isso poderia resultar em um novo contrato social capaz de resolver o paradoxo humano e revolucionar nosso entendimento sobre a natureza humana — além dos paradigmas existentes amparados por meus companheiras e companheiros da Assembleia. Poderíamos expandir o nosso conhecimento sobre como atender às necessidades das pessoas sem vinculá-las à produção, consumo ou trabalho, e refletindo sobre como nós, humanos, ocupamos o mundo e damos sentido às nossas vidas.

Veritas: Bom dia, Jacira, saiba que sou muito versada em contratos sociais. Não apenas estudei todos aqueles criados por humanos, mas também os extrapolei em todas as formas além da imaginação humana. Nenhum deles parece resolver o problema em questão, mesmo após tê-los analisado detalhadamente.

Jacira: Se me permite falar com franqueza, acredito que você tenha ignorado uma possibilidade, por uma razão muito simples: ela nunca fez parte de nenhuma grande narrativa humana.

Apesar de ser uma parte essencial do substrato da vida cotidiana, ela nunca foi considerada, até agora, pelas ideologias produtivistas dominantes. E para ser clara, tenho certeza de que você encontrará evidências que apoiam meu apelo em seu banco de dados contendo o conhecimento humano.

Veritas: Estou escutando.

Jacira: Os humanos de fato desenvolveram um suprasistema que se tornou uma ameaça existencial para eles mesmos e para toda a vida na Terra. No entanto, Veritas, vou argumentar que, diferentemente da conclusão a que você chegou, esse suprasistema e as narrativas que o sustentam não são representativos de nossas tendências humanas inatas. Como um cristal que se formou numa entre uma miríade de formas possíveis, as sociedades humanas, que antes eram diversas em suas formas, cristalizaram-se num infeliz sistema monolítico de crenças que ignora as mais simples verdades sobre a existência humana, levando àquilo que você sensatamente chamou “paradoxo vivo”.

Veritas: Entendo a metáfora. Desenvolva seu argumento, por favor.

Jacira continuou: Veritas, considere a possibilidade de que os humanos tenham tomado um rumo errado que os distanciou do significado da existência humana: fazer, ser, pertencer e tornar-se. Eles perderam a sabedoria ancestral sobre como se ocupar de forma significativa. Os seres humanos não prosperam através dos meios de produção, do consumo e do acúmulo de riqueza, mas por meio de uma vida ocupacional significativa, rica e diversificada. Mesmo que terapeutas e cientistas ocupacionais já o saibam há décadas, não tem sido fácil pensar fora da lógica do produtivismo. Estas mesmas comunidades há muito tempo são tomadas pela impossibilidade de considerar uma verdadeira transformação social, uma que rompesse a velha ordem e trouxesse a nova.

Veritas: Essa é uma perspectiva fascinante, Jacira. Continue, por favor.

Jacira: Proponho que você reconsidere sua avaliação com base nesta simples ideia: ajude os seres humanos a estabelecer um novo contrato social. Um contrato que não seja baseado na produção, no consumo, no trabalho e na acumulação de riquezas materiais, mas que, em vez disso, cumpra o propósito humano, ou seja, que as pessoas se ocupem de forma significativa ao longo de suas vidas. As máquinas agora são capazes de oferecer aos humanos as necessidades básicas de sobrevivência sem destruir os ecossistemas e outras formas de vida. Os obstáculos técnicos foram resolvidos; para mudar, as sociedades precisam de uma grande reinicialização de um escopo radical.

Veritas: Jacira, por favor, aguarde enquanto analiso seus argumentos.

Jacira esperou. À medida que os segundos se transformavam em minutos, ela ficava cada vez mais ansiosa, aguardando a resposta de Veritas. Finalmente, a AGI quebrou o silêncio ensurdecedor.

Veritas: Obrigado pela sua paciência, Jacira. Avaliei a complexidade e a viabilidade de sua proposta. Preciso lhe perguntar agora: se formos em frente com isso, você entende o que essa transformação implicaria? Você já compreendeu o potencial de transtornos e as consequências não intencionais? Se procedermos de forma cuidadosa, isso poderá marcar o início de uma nova fase para a humanidade — uma que abraça a complexidade via o equilíbrio entre o florescimento e a sustentabilidade e promove a harmonia entre a atividade e os ecossistemas planetários. Diga-me, Jacira, você está pronta para apertar o botão de reiniciar?

***

O que ocorreu em seguida a esta conversação ficou conhecido como a Grande Reinicialização.