

Sobre imaginação política e a
reivindicação de nosso potencial de
construir mundos
Aline Godoy-Vieira
É com enorme satisfação que escrevo estas palavras em comentário às contribuições reunidas nesta edição de Occupational Punk vol. 3. A leitura dos textos aqui apresentados foi uma experiência transformadora, capaz de afetar minha própria narrativa sobre a vida cotidiana na Terra. Imaginar mundos e produzir narrativas sobre a vida em comum é uma necessidade humana fundamental, que demanda ativação e sustentação contínuas — sobretudo se desejamos retomar a autoria de nossa própria história.
Ao me permitir ser afetada pelas narrativas aqui imaginadas, fui levada a rememorar, repetidamente, os motivos que me levaram a cultivar terra, ervas e alimentos em meu quintal, ressignificando o sentido de cuidar cotidianamente e sentir-me conectada. Também reafirmei meu compromisso diário com projetos emancipatórios, atendendo à urgente necessidade de luta anticapitalista e de resistência ao avanço da extrema-direita que está alinhada a uma lógica de consumo e opressão. Trata-se de uma conexão com a Terra, com minha ancestralidade, com as gerações futuras e com as pessoas que compartilham este planeta comigo no presente. Inicio, assim, agradecendo à equipe de edição pela oportunidade de assumir esse papel, e às autoras e autores desta edição — bem como a todas as pessoas que submeteram textos — pelo exercício de vida e conexão que suas obras expressam e nutrem.
A razão pela qual esses textos me transformaram parece residir na potência revolucionária da análise do cotidiano, entendendo-o como pilar da totalidade social. (Galheigo, 2020; Farias, Lopes, 2021). Embora constitutivo de nossa condição enquanto seres sociais, o cotidiano só pode ser apreendido por meio de uma análise que ultrapasse sua aparência, rumo à sua essência. Para isso, é fundamental analisar as mediações realizadas pela atividade humana no cotidiano. Vislumbrar — e acionar — sua potência transformadora exige reconhecer a ontologia do ser social estruturada no cotidiano, ou seja, compreender coletivamente como cada ação manifesta a totalidade e, ao mesmo tempo, transforma não apenas o mundo ao nosso redor, mas também a nós mesmos (Lukács, 1980).
O conceito de teleologia oferece uma chave interpretativa importante para essa compreensão. Refere-se à capacidade de imaginar o resultado de uma ação antes de sua realização — não se trata apenas de planejamento, mas de intencionar a transformação e reconhecer-se nela (Mendes-Gonçalves, 2017). Esse processo ativa nossa atividade no mundo compartilhado, instrumentalizando a forma como elegemos os materiais com os quais nos relacionamos, decidimos a ordenação de cada gesto e, de fato, ocupamo-nos cotidianamente. Precisamos imaginar antes de criar.
No entanto, essa capacidade é, por vezes, interrompida. O conceito de estranhamento contribui para entender esse rompimento: trata-se do fenômeno de separação entre nós e o resultado de nossa atividade no mundo compartilhado. No estranhamento, realizamos tarefas sem nos reconhecermos nelas, estabelecendo uma relação prática-utilitária com o cotidiano, manipulando artefatos sem consciência de que o mundo no qual podemos viver passa pela retomada da possibilidade de criação que reside em nós (Farias, Lopes, 2022; Marx, 1984). O estranhamento atravessa todos os sujeitos no contexto do capitalismo, pois este depende do estranhamento e da alienação para gerar lucro a partir do trabalho humano. Afinal, se todas nós pudéssemos nos horrorizar com a estrutura do trabalho capitalista — como ocorre com a jovem no texto Everyday Value — dificilmente a aceitaríamos por muito tempo.
Rosana Pinheiro-Machado (2022), em uma profunda análise antropológica de nossos tempos, identifica que o avanço da extrema-direita se relaciona a uma apropriação da raiva e da insubordinação das populações empobrecidas e oprimidas, que são maioria. Se é legítimo resistir e agir para superar o que nos oprime, a resistência pode tomar muitas formas. Especialmente em um contexto de hegemonia cultural capitalista, o individualismo, a competitividade e a noção de escassez fazem crer que é necessário lutar apenas por si e, no máximo, pelos seus.
Num mundo saturado por narrativas catastróficas, que exaltam heróis solitários e vilões absolutos, imaginar em conjunto é um ato de resistência. Reconhecer que estamos conectados por algo em comum é um gesto político. Significa reconhecer que nossos limites não decorrem da escassez de recursos, mas do isolamento e da crença de que não pertencemos. É imperativo reassumir a esperança, como proposta ativa, no bojo das ideias de Paulo Freire e bell hooks (Farias, Lopes, 2022; Freire, 2005; Pinheiro-Machado, 2022; hooks, 2021). Textos carregados de potência imaginativa crítica como os que encontramos nesta edição, podem nos apoiar no redirecionamento da justa indignação e na produção de necessidades radicais de superação do modo de produção capitalista (Mendes-Gonçalves, 2017). Trata-se de disputar a raiva legítima e a insubordinação das populações oprimidas, alinhando-as e alinhando-nos a um movimento de transformação coletiva e emancipatória.
Neste contexto, a imaginação política e a esperança tornam-se fundamentais (Von Hunty, 2022). Imaginar é delinear possibilidades de mundo. Para isso, é necessário dispor de um repertório de possibilidades e, principalmente, de consciência de si como sujeito capaz de imaginar. A angústia de Célia, em Let’s eat, ao se ver alheia à sua capacidade de imaginar e planejar uma simples refeição, evidencia o quão nefasto — e, ao mesmo tempo, o quão próximo — está esse estranhamento.
É imperativo abrir espaços que nos permitam reivindicar de volta o nosso fazer, em toda sua complexidade teleológica e ontológica. Ao experimentar materiais, relações e gestos, tornamo-nos capazes de construir novos repertórios e imaginar respostas antes impensadas, como o uso mágico e ancestral do dedo mínimo em Otro cielo es punksible. As narrativas reunidas nesta edição constituem uma meta-experimentação: o movimento necessário à escrita dessas histórias, bem como aquele produzido em quem as lê (ou ouve), ativa exercícios de utopia e imaginação política. Essa experiência possui o potencial de engendrar novos movimentos no cotidiano, ao instaurar processos teleológicos inéditos na direção da conexão, partilha e do pertencimento a um projeto em comum.
A conexão e o pertencimento emergem como elementos centrais na reivindicação de nossa condição criadora. Fica evidente que não basta uma ilusão de conexão — por mais realista que pareça — como aquela presente no diálogo com a inteligência artificial em Found, ou no clube holográfico de Outside. O sentimento de profundidade na troca de olhares não mediados por telas, conforme descrito em Transhumance, aponta para a necessidade de uma experiência e de uma consciência acompanhada de uma narrativa que produza sentido — para que possamos desejar romper com opressões cotidianas e criar respostas inovadoras para a vida compartilhada (Farias, Lopes, 2022). É necessário que nos encontremos, que nos toquemos, que nos vejamos sem a mediação de interfaces, para que um real pertencimento possa se instaurar.



Parece ser essa a potência da proposta dos terapeutas ocupacionais em Co-Creating a Short Program in Occupational Therapy to Support Sustainable and Just Occupational Transitions, ao delinearem uma trajetória formativa que apresenta outras narrativas sobre o mundo e seus artefatos, sobre a natureza, e propõe experimentações na reformulação dos próprios cotidianos junto às pessoas em formação. É possível vislumbrar como essa formação nos conduziria às publicações de Francophone Journal of Research on Occupation – Anno 2151, num contexto em que o conhecimento é compreendido como um bem comum, em constante aprimoramento coletivo.
Narrar é disputar a verdade na confluência entre consciência e teleologia (Mendes-Gonçalves, 2017). Em The Great Reset, quando Jacira revela que a narrativa sustentada por Veritas não continha a totalidade do mundo concreto da experiência compartilhada; ou em Soul Craft Rebellion, quando a narrativa institucional foi desmascarada pela exposição de suas ações concretas, mas também da experiência humana de quem fez resistência, essa disputa emerge como ferramenta de produção de consciência e empatia, com potencial para ativar novas teleologias e outras relações com a tecnologia. Ao identificar o estranhamento nas relações com a tecnologia e as instituições, devemos reconhecê-las como criações humanas e, portanto, passíveis de transformação por meio de nossas mãos e mentes.
Analisar o cotidiano tecnológico e institucionalizado sob essa perspectiva não implica um rompimento com a tecnologia, mas com o estranhamento e a opressão do modo de produção capitalista em que estamos criando-a e utilizando-a. A tecnologia é fruto do desenvolvimento humano e pode ser ferramenta emancipatória. O desafio está em ultrapassar sua aparência complexa e identificar as mãos e ações que a criaram. Assim, torna-se possível reassumir o lugar de sujeito na relação com ela. Esse des-estranhamento — no qual a tecnologia retorna à condição de ferramenta e os sujeitos à de agentes — possui o potencial de recolocar o avanço tecnológico a serviço da humanidade, do bem comum, da alegria e do gozo, de modo equânime para todas as pessoas.
Os textos que nos inspiram nesta edição revelam tais possibilidades com clareza e emoção. Atravessam corpo, mente e coração. Provocam reflexões sobre o que temos vivido, em conexão com o que ainda podemos viver. Emerge deles a percepção de que a vida concreta se realiza nos gestos cotidianos e que, quando esses gestos são conectados por uma intenção coletiva de cuidado e responsabilidade, tornam-se revolucionários. Essa intencionalidade pode configurar o sentido da atividade humana, tal como ativado pelas análises e proposições de especialistas da atividade humana no cotidiano — terapeutas e cientistas ocupacionais — que estabelecem um compromisso consciente com um projeto coletivo emancipatório.
Ursula K. Le Guin (2015), escritora de ficção científica, afirma a função política de imaginar mundos e compartilhá-los por meio das narrativas, como uma importante contribuição de quem escreve para um projeto de sociedade . Terapeutas e cientistas ocupacionais, ao analisarem o cotidiano junto a outras pessoas, e ao proporem e experimentarem, com elas, vivências que reabilitem a imaginação e o fazer coletivo, também podem contribuir com essa luta ampliada. Nossas ações cotidianas, quando atravessadas por intencionalidade e consciência crítica, podem apontar caminhos para a construção de mundos possíveis — não como destinos impostos, mas como histórias assumidas e criadas conjuntamente por nós.
Referências bibliográficas
Farias, M. N., & Lopes, R. E. (2021). Everyday circulation and social occupational therapy praxis. Interface – Comunicação, Saúde, Educação, 25, e200717. https://doi.org/10.1590/interface.200717
Farias, M. N., & Lopes, R. E. (2022). Social occupational therapy, anti-oppression and freedom: considerations about the revolution of/in everyday life. Cadernos Brasileiros de Terapia Ocupacional, 30(spe), e3100. https://doi.org/10.1590/2526-8910.ctoEN23453100
Galheigo, S. M. (2020). Occupational therapy, everyday life and the fabric of life: theoretical-conceptual contributions for the construction of critical and emancipatory perspectives. Cadernos Brasileiros de Terapia Ocupacional.28(1), 5-25. https://doi.org/10.4322/2526-8910.ctoAO2590
Godoy-Vieira, A., Malfitano, A. P. S., & Soares, C. B. (2024). Fundamentos do processo de trabalho em terapia ocupacional: uma abordagem analítica a partir do diálogo entre Terapia Ocupacional Social e Saúde Coletiva Latino-Americana. Cadernos Brasileiros De Terapia Ocupacional, 32, e3627. https://doi.org/10.1590/2526-8910.ctoAO278836271
Le Guin, U. K. (2015, November 19). Ursula K. Le Guin – National Book Awards Speech [Video]. YouTube. https://www.youtube.com/watch?v=wntFiJ7OrzM
Lukács G. The ontology of social being – 3. Labour. Merlin Press: London; 1980.
Mendes-Gonçalves, R. B. (2017).Práticas de saúde: processo de trabalho e necessidades. In J. R. C. M. Ayres & L. Santos (Orgs.), Saúde, sociedade e história (pp. 298-374). São Paulo: Hucitec.
Pinheiro-Machado, R. (2022, March 16). Autoritarismo e redes sociais: o que sabemos e o que ainda precisamos responder – Aula Magna [Vídeo]. YouTube. https://www.youtube.com/watch?v=Vw_hJX17u2E
Von Hunty, R. [Tempero Drag]. (2022, 4 mai.). ESPERANÇA E IMAGINAÇÃO POLÍTICA [Vídeo]. YouTube. https://www.youtube.com/watch?v=iqI7ZHVniSg
Freire, P. (2005). Pedagogia do oprimido (41ª ed.). Rio de Janeiro: Paz e Terra.
hooks, b. (2021). Tudo sobre o amor: Novas perspectivas (S. Borges, Trad.). Editora Elefante.
Marx, K. (1982). O capital: Crítica à economia política (7ª ed.). São Paulo: Difel.